quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Prefácio de "ENTRE-CORPOS", pelo Poeta Jão Tomaz Parreira

Prefácio de "ENTRE-CORPOS"

A CONTRA-FUTILIDADE DE UMA ANTI-FRANÇOISE SAGAN

            Levados pela citação inicial, da I parte do volume de poemas de Isabel Rosete, do heterónimo pessoano Álvaro de Campos, «De eterno e belo há apenas o sonho (...) A subtileza das sensações inúteis», poderíamos pensar que este «Entre-Corpos» é pura manifestação de poesia platónica.
Nada mais falho na observação desta poiética estruturada, indubitavelmente, no sujeito-objecto do Amor, o Corpo.
A autora escreve estes seus poemas da mesma forma como abordou a fenomenologia das vozes do pensamento, isto é, baseada numa filosofia existencial do amor. E escreve-os com um fio condutor de contra-cultura, isto é, anti-amor fútil, o parecer ser feliz na superfície apenas e no desequilíbrio das relações, que a romancista francesa Françoise Sagan tão bem nos expôs, nos anos 50.
A futilidade não aceita o que Alain de Botton, na outra citação da poeta, refere como a dificuldade em alguém considerar o que é ou quem é o «amor da nossa vida».
A futilidade no amor é o momento, não é a eternidade, tem mesmo rejeição a ser eterna.
Ainda no domínio das citações – hábito salutar da autora quando inicia obra própria –, se o amor começa no sentido da visão, no olhar, nos olhos que os antigos gregos ligaram ao vocábulo «phos» (luz), então passamos das imagens para a obra do coração – como disse Rainer Maria Rilke –, embora culmine por reflectir que «donzela conquistada \ mas nunca amada».
O amor é obra do coração, mas começa nos olhos.
É isto, porém, que inquieta o Ser, os olhos por vezes são fúteis quando apenas se detêm à superfície dos seres e das coisas.
Daí a angústia do Amor, o saber decifrar as profundidades, a ciência do mergulho no profundo.

Inquietude

A angústia do Amor
Irrequieta-me!

Porque a poeta tem uma perspectiva do Amor ligada ao Ser e projecta-a num devir, os «amores ainda não vividos» – como diz no poema de abertura deste livro.
Contudo, a anti-futilidade que no nosso título referenciamos reside no facto, a priori tomado, de que existem amores que podem ser para rejeitar, estes «não vividos» (esta expressão filosófica metida na poética é de duplo sentido, tanto quanto é uma prosopopeia feliz em que o eu-poético fala da sua intimidade existencial). Os essenciais, no fundo, são aqueles amores que a poeta canta em «pathos», quando escreve «sofro pelos que gostaria de viver».
Disse acima que o Amor – os amores-vividos, os não-vividos ainda, os que gostaria de viver – na poesia de Isabel Rosete está intrinsecamente ligado ao Ser, e este verso é a verdade na qual se estrutura essa afirmação:

Quero-os e rejeito-os,
Num só e mesmo instante
De plena inquietude existencial
(o grifo é meu)  

ou nestoutros versos sobre os traços da Vida que passam por nós em cada rosto, em cada corpo, que reflectem amor, tristeza, solidão, felicidade efémera que a poeta qualifica como escassos momentos de prazer ou glória, temos de novo o referente do Ser:

De cada instante existencial
Tão belo ou tão medonho.

Porque, no fundo, este «Entre-Corpos» trata do finito para o infinito, do desejo satisfeito para a decepção noutra maneira de dizer Schopenhauer, do corpo para a alma e deste trânsito metafísico ao contrário, da «psique» para o «soma», e assim a autora pode culminar em posfácio, como um corolário do que apresentou em forma e conteúdo poemático:

«Fala-se de Corpos nesta obra que desce até às entranhas do Sentir. De corpos vivos e de corpos mortos; de corpos decaídos e exaltados; de corpos cansados e embriagados; de corpos em todas as suas formas e estados reais e possíveis.
Também as Almas são, aqui, celebradas: as puras, as impuras, as que transmigram, as que permanecem neste ou naquele lugar sonhado, vivido, projectado, tão intensamente, pela paixão convicta de ser o Tudo, na sua autenticidade iluminatória.»

Daí este seu novo livro de poesia conter «coisas do Amor e da Morte ou da Morte do Amor (que) são, no limite, as mesmas».
A natureza da objectividade com que nos apresenta este livro é a da presentificação do Amor, diz Isabel Rosete que «também o Amor se presentifica, nestas linhas escritas com a minha alma e com o meu corpo, nas suas múltiplas formas ou séquitos de ser, sem ocultar alguma. Amores de todas as cores e de todos os sons. Amores de todos os sabores, tactos ou cheiros (....) Tão-só Amores».
E Amores que vivem e aniquilam ao mesmo tempo, que se transferem para além-Morte e, em consequência, para a Eternidade, não são na feliz concepcionalidade da autora, amores fúteis.
Poesia de Amor de tormenta, que «enleva a Alma \ Atormentada», nunca pode ter esse Amor como sujeito ou objecto poético fútil.
Aqui chegados leiamos Françoise Sagan. O romance ícone «Bonjour Tristesse» onde o amor tem uma concepção psicológica de futilidade, os amores são rápidos, violentos e passageiros. A romancista francesa parte da futilidade, do luxo, da vida fácil, para o contra-senso da tristeza. À parte um amor incestuoso da filha pelo pai, que se descreve no dito romance, o que perpassa é o amor estéril, o egoísmo, onde a frase «amo-te» é uma frivolidade.
O amor demasiado triste, em «Bonjour Tristesse», fazendo a intertextualidade com «Entre-Corpos», torna-se aqui no poemário de Isabel Rosete, o Amor-Existência, com todos os estados que o «Dasein» heideggeriano comporta, porquanto se sublima a trilogia Vida, Amor e Morte.
Para esta última categoria evidenciada de facto, a Morte – o derradeiro problema do Ser -, a poeta define-a com a verdade consabida das limitações do próprio Ser, do «Ser-para-Morte» sempre heideggeriano.
Contudo, poematiza a questão numa prosopopeia em que a alma humana se parece representar com sentidos palpáveis que só o corpo sente e evidencia, as almas não. Isto é, no poema «Grilhões do Corpo» Isabel Rosete fala-nos de uma «Alma Abandonada, / Lançada aos grilhões do corpo», como algo sólido, com forma, manuseável, que se consome na procura «física» da saída do labirinto do Touro de Minos. E perante este longo poema, estamos de novo mergulhados na poesia filosófica da autora, poema estruturado entre indagações em dialéctica subjectiva / objectiva, do onírico (Orfeu, se quisermos), da poética (Novalis) e da própria mitologia (o labirinto de Dédalo).
À poesia pura com que tece os poemas:

«A magia eterna de uma rosa sem espinhos,
Que a morte perpetua na sua morada!»
a autora acrescenta a recorrência de vocábulos do léxico filosófico que vêm a contribuir para, uma vez mais, uma poesia altamente pensada, com veios auríficos da filosofia da existência.  Existência e existencial, Ser, Morte, Amor e des-amores, corpo e alma, corpo sobretudo no plural.
Sem a mínima pretensão de me sobrepor à obra prefaciada, tentação ilegítima de resto, cabe-me apenas salientar aspectos, que para mim funcionaram como pólos de leitura. E um desses foi, sem dúvida, tentar ler hermeneuticamente, a dicotomia corpos e almas.
De facto, termino fazendo a travessia da Europa filosófica do pensamento sobre o Amor, a Metafísica do Amor de Schopenhauer, do século XVIII, para a definição claríssima da Poética do século XX, com Manuel Bandeira.
O filósofo alemão escreveu que importa bem mais a harmonia dos corpos que o acordo das almas, e o poeta brasileiro:

          «Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo.
          Porque os corpos se entendem, mas as almas não.»

        (c) J.T.Parreira

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